sábado, 30 de outubro de 2010

parte três



Com um frio demolidor sai de casa recheado de adereços de inverno. Kispo dos grandes, luvas, gorro, cachecol, e umas duas camisolas vestidas. Aquele Janeiro de facto estava a ser dos mais gelados dos últimos anos, e não existiam por enquanto grandes sinais de esperança numa retoma da normal temperatura naquele seu sítio. A cidade devagar acordava, com os candeeiros a começarem a ficarem somente a meia-luz, o padeiro ao pé de casa a abrir a porta de vidro, o quiosque de jornais a receber os periódicos do costume.

No entanto aquilo para ele pouco importava. Naquele dia ele não se levantou para apanhar o autocarro que o conduziria ao malfadado call-center dos últimos meses. Não se levantou para ver o costume, viver o costume, respirar o ar de sempre. Afinal a mala que trazia a rastejar pelo chão era precisamente indiciador do contrário: aquele seria um dia diferente dos demais. E daí que em pleno Agosto tanto adereço invernal fosse utilizado, digno de uma nota específica para qualquer transeunte. Ao dizer bom dia ao senhor Marques da padaria à senhora Andozinda do quiosque, eles ficavam a olhar para ele sem sequer granjear um qualquer som. Estava demasiado calor para isso. Mas para ele não: o frio gelado de Janeiro era tudo o que lhe apetecia sentir naquele momento. Porque o futuro hábito era mais importante que o do passado, era a sua teia de esquecimento de tudo, de libertação, de felicidade, de vida.

E foi com esses pensamentos na cabeça que se digna a apanhar um táxi, sob o olhar atónito do taxista, que nunca devia ter visto ninguém tão preocupado com o frio numa tarde como aquela. Colocou a bagagem na mala do carro, sentou-se e perguntou-lhe o destino. Ele sorridente somente respondeu:

- Barrow.
- Desculpe? Não ouvi.
- Barrow.
- Sim mas…isso fica onde?
- No norte. Mas se me deixar no aeroporto eu ponho-me lá.
- Aeroporto?
- Enfim, pode ser sim.

O taxista nem lhe perguntou mais nada, já satisfeito com a sua ilacção de que o passageiro era um qualquer louco. Deixou-o no local, recebeu o dinheiro, e disse-lhe boa tarde. A partir dali foi à vida dele tentando decerto esquecer o maluco dos casacos com os 30 graus que se faziam sentir. Já o rapaz entrou no aeroporto com o bilhete na mão para o outro continente. A América esperava claramente por ele, não havia nada a fazer. Tinha de partir, sair arejar, ser outro. E esse conjunto de personalidades conseguiu-o quando percebeu que todo o manto branco envolvente era conjugação mais que suficiente para se ir embora. Ali. No topo do mundo.

Fica expectante. Lá dentro meio mundo continuava a fitá-lo por causa da sua estranha indumentária. E ele por dentro sentia frio, embora gotas e gotas de suor lhe fossem caindo do rosto. Mas pouco lhe interessava que questionassem a sua abordagem à temperatura que se fazia sentir. Para ele estavam 20 graus abaixo de zero e a neve era intensa. Longas planícies de gelo se abeiravam dele e faziam-no uma espécie de rei dos céus. E tão bonito que seria sentir-se livre com todas as preocupações do outro lado do mundo, com toda a gente que conhecia ausente, com o mundo inteiro a virar-lhe definitivamente costas. Para ele era paraíso – e pensava só o conseguir num local inóspito, longínquo, inatingível. Tudo o resto seriam meros refúgios e refugos inconsequentes e que não o levariam de todo à máxima redenção, meditação e vida. E sair dali como que purificado, ou não sair, morrer ali com os topos brancos a enregelarem-lhe o cadáver a decompor-se.

Olha para o bilhete rumo a Newark e percebe que está na altura de finalmente embarcar. Há muito que tinha feito o check-in, ali no cais só esperava por um chamamento humano, quente que lhe indicasse interacção, que lhe desse realmente importância. E quando a voz do megafone soou em todo o aeroporto é que ele finalmente sorriu, clamou por liberdade e avançou. Estava na altura de acabar com o cordão umbilical e finalmente partir, rumo a um prometido, doce e gelado desconhecido.


trilho sonoro: porcupine tree - in absentia

parte dois



Abro os olhos. O sol cobria-me totalmente a visão e pouco deixava antever o dia que tinha à minha frente. Senti um mal estar numa das pernas que tinha ficado meio colada ao volante. A cabeça dóia-me de um modo não fulminante mas constante, demasiado constante. Nem me sentia ali. Nem sabia onde estava. Provavelmente perdido numa das entranhas do mundo que por vezes tanto gosta de me acolher, qual viajante desbragado em busca de paz interior.

E ao olhar para o banco de trás e ver as garrafas de alto teor alcóolico, bebidas brancas...pretas, castanhas, amarelas, de todas as cores. e meia dúzia de comprimidos que provavelmente me haviam deixado em êxtase, mas já meio esmaecidos com o embater do sol directamente naquelas cápsulas ali soltas ao desbarato.

Só tinha uma certeza: aquele carro era o meu. Mas não me conseguia consciencializar de como ali tinha chegado. Decido-me por retirar a perna da posição desconfortável, algo conseguido muito a custo, convivendo inclusivamente com a dormência daquela parte de meu corpo. Sento-me no lugar do condutor e é aí que sinto um arrepiar de espinha. Não daqueles que surgem em filmes de terror clichés, onde um arrepiar é o momento que desencadeia uma torrente de desgraças e mortes para seus protagonistas. Mas frio mesmo. Um tremer gélido de frio, pouco condizente com o sol que sabia existir. Estranha dicotomia de sentimentos meteorológicos divergentes. A menos que...

Que estivesse a olhar para longos mantos de neve. E que mal conseguisse abrir a porta do carro, condicionada por uma massa branca que começava a ficar demasiado espessa. e claro, tinha vestido um anoraque, umas botas, umas calças de bombazine que deviam ser quentes. E ao sair do carro vejo branco, vejo amarelo, vejo azul...mas mais nada. Três cores compunham o ambiente daquela paisagem bela e inerte. No entanto algumas cores pareciam também ali estar ao longe. Uns blocos verdes. Uns blocos amarelos. Vermelhos. Um bloco maior que parecia ser castanho. Uma cidade ali no meio do branco, pronta a salvar minha condição humana. ali sentia-me perdido ao ter acordado no meu carro. Mas uns metros à frente a salvação parecia surgir com meia dúzia de construções de betão a acalorar o meu caminho.

Olhei para o relógio. seis da manhã. Afinal a ressaca tinha chegado demasiado depressa. e a dor de esquecer começava a ser maior que a dor de cabeça do simples acordar naquele carro. Da perna. Dos olhos ao vislumbrarem o doirado do sol. E entre saberes, ao caminhar para perto da alma soube onde estava. Longe. Ali em cima estávamos demasiado longe para olhar para baixo. e eu para olhar para casa.


trilho sonoro: something corporate - i woke up in a ca