terça-feira, 28 de dezembro de 2010

parte dez.



Pouco tenho eu a dizer quando me vejo cá em cima. A luz que emana diariamente e que se esmaece durante a noite, não desaparecendo porém, está a captar as minhas faculdades mentais para um fascínio contemplativo, pouco condizente com a aparição de simples poesia. E este estado letárgico é uma espécie de auge zen que a minha existência se começa a habituar. como droga, esta rotina em ter o cérebro vazio de circunstancias, consome-me por dentro e torna-se eterno prazer.

Mesmo quando penso nela, nelas, nas perdas que fui tendo ao longo da minha jornada. Não vejo, não sinto, não ouço, apenas caminho pelos tufos brancos que são todo o cenário onde me insiro. Nada respeitante ao sol sufocante que tinha lá em baixo, na chuva terrena e pouco acolhedora, mas sobretudo nada condizente com a pressa de tantos anónimos corpos envolvidos numa redoma que de tão própria se torna impenetrável. E ao ver a minha sombra reflectida no gelado lago, vislumbro todas as sombras que esse lugar comporta. Nenhuma, nenhuma delas parece ser bonita.

Como o sorriso dela. e a sua face. e seus fantasiosos púlpitos, o pulsar da terra que tão forte e intenso soa quando aquela mulher se abeirava de mim. E o imaginário soa tão gigante quando sua face tocante e seus olhos de presa pura e imaculada surgiam defronte dos meus.

às vezes penso que todos estes apontamentos são escritos de modo demasiado aleatório, de maneira que a repetição de propostas seja esbatida naquilo que vou debitando. Mas sinto ao mesmo tempo que eu já estou demasiado vazio para pensar noutra coisa que não seja aquilo de que fugi: o passado.

E é esse passado que penso não ser próprio para já revelar, que me atormenta sempre que me deito, sempre que acordo para mais um dia de fuga ao que vivi outrora. Sempre que vejo os olhos da empregada da pizzaria, da hospedeira, até da mulher que me atende no banco. Ali vejo-a a ela e sei que algures ela me vê. Nem que seja enquanto sombra anónima que vagueia todos os dias no seu subconsciente. e mesmo que não seja sombra, posso ser apenas o sopro que seu respirar ecoa pelos lugares onde passa.

Sei que eu não passo lá. E escuro fico eu quando ela brilha. E foi nesse contraste cinzento que decidi queimar etapas e desvanecer antes dela ficar a pensar que eu de facto era real.

O medo é mais forte que a crença. E ganha a todos.

trilho sonoro: city and colour - confessions

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

parte nove.




È complicado falar de amor. Não é como se as palavras bastassem, ou mesmo os actos que se fazem em prol desse sentimento para tantos puro, belo, eterno, para outros negro, pérfido, mortífero. Simplesmente sente-se algo inexplicável por outrém, desejo incontrolável em querermos estar com determinada pessoa até ao fim de nossos dias pensamos nós. E esse desejo por um quase controle da vida de outro ser humano, pode de toda a forma carcomir nosso pensamento, ideias, personalidade. Não somos nós quando nosso coração bate com mais força. e muito menos somos nós a agir quando parecemos maiores que a vida.

Mais que isso: não o agarramos, não o apalpamos não sabemos o que consegue ser. è appenas uma dor que nos aflige, da qual procuramos cura no consolo em conseguir aquilo a que talvez nos tenhamos proposto: conquistar a mulher amada. Mas... e quando não é esse o propósito? Quando simplesmente nos acontece colocá-la em extremoso pedestal amando, sim amando, mas sofrendo também com a notória percepção que a impossibilidade é o que vemos como certo?

Fugimos. Saímos de onde estamos, do nosso corriqueiro espaço, de nossa familiar congregação e simplesmente deixamos o coração bater até que ele páre. Não morreremos, depressa virá outra mulher a quem nos podemos agarrar enquanto contrabalanço de nossos desesperos. E por mais que digamos que isso não irá acontecer, e que para toda a vida ficaremos racionais e gélidos, acabamos por nos contradizer mais depressa que caímos em paixão. Mais depressa achamos que a melhor mulher é sempre a próxima. a que surge quando desatentos estávamos nós a cortejar outros seres, a imaginar tempos infinitos com elas num qualquer lugar, onde simplesmente o mundo não interessasse mais. E, do nada, quando a chama se apaga, outro fogo começa em local que nunca tínhamos julgado possível.

A menos que fiquemos mesmo gélidos. E sintamos o poder do branco em nossas entranhas, rostos, corações, almas. E cada dia ao acordarmos vejamos crianças a correr pela neve com ingénuos sorrisos, como se o topo do mundo bastasse para a felicidade. Pessoas a quem o frio não afecta porque o sente como se fosse também deles. Ter orgulho na cidade que os viu nascer, ou surgir num qualquer dia que este mundo nos ofereceu. Quando nos sentimos frios o melhor é aquecermo-nos com quem está connosco. Nem que seja num sentido literal, longe das sinuosas metáforas que sempre percorri ao longo da vida.

O amor não é cura para nada. Mas de comichão irritante até doença mortal, tudo nesse patamar pode ser realizável. Assim queira nosso coração palpitante. Assim queira quem morre por ele.


trilho sonoro: mogwai - friend of the night

terça-feira, 30 de novembro de 2010

parte oito.




Não sei de onde era. Neste momento olho para o habitual rebuliço na cidade, naqueles dias mais quentes onde a temperatura consegue estar positiva. pessoas sem quispos a andar por barrow, com carrinhos de compras atrás sem botas de nave, com caras totalmente destapadas e alguns a ousar utilizar t-shirts de simples algodão. estava eu ali ainda de camisola pronto para afirmar sofrimento face àquilo que julgava ser totalmente hostil, enquanto os nativos vagueavam alegremente, indo de loja em loja, de restaurante em restaurante, ao aeroporto, ao pequeno centro comercial que barrow possui.

E pensava que surgiriam também turistas. Era altura de começarem a existir pessoas de fora, afoitas pos descobrir o topo do mundo onde vivem. muitos americanos, alguns hispânicos e japoneses, mas sobretudo familiares daqueles que foram ficando na cidade. Era uma roda viva em torno de quem regressava, partido há muitos ou poucos anos para latitudes mais baixas. Convenhamos que para muitas destas pessoas estar longe de possível civilização, e não ter meios terrestres para além de meia dúzia de quilómetros para diante, era fenómeno de grande consternamento. Por mais amor que tivessem a barrow, a falta de relacionamento com povoações próximas era obviamente inexistente.

Eu já parecia ser da casa. Não sei de facto de onde era. passado aquele tempo, as minhas memórias geográficas eternizavam-se neste manto de neve e brancura. pouco mais existiria de mim para além dos dias em que passeava vagarosa e pacientemente pelas ruas geladas e enlameadas da cidade mais acima. As casas de tectos cheios de gelo, as portadas brancas, os restaurantes com o branco a sorrir à porta. os supermercados de preços exorbitantes, os calorosos centros recreativos com caldeiras que nos temperavam, os lagos onde as baleias eram caçadas, e mesmo o aeroporto que só me lembro de ter utilizado quando chegara ali. E era naquele mesmo local que a vi finalmente surgir.

Não sei quantos anos tinham passado. mas ela era a mesma. o mesmo sorriso de afecto e comoção, a mesma expressão de felicidade eternizada nos seus olhos, o mesmo cabelo longamente loiro a querer a minha clara afeição. Não era pouco eu ver tudo aquilo em minha recôndita alma. Nunca pensei reconhecê-la depois de tanto tempo a negar-me a verdade. A Joana restava ali imaculada, pura e simples como se impossível fosse envelhecimento em tal face. E meu rugado rosto sorriu perante memória eternizada em ares de distanciamento entre os nossos tectos.

Sim fui ter com ela. Hospedeira? Assim parecia. Ela sorriu-me, chamou-me velhote simpático e indicou que se chamava Charlotte. Vinha de fairbanks, tinha os seus 30 anos e nunca tinha estado em portugal. não sabia palavra do nosso idioma. e sobretudo não era a Joana, mesmo depois de eu ter insistido que a mentira mais que um pecado, era um dilema. Volta-me a sorrir, diz que tem de ir trabalhar, mesmo observando a minha manifesta insatisfação por tão pouco esclarecedora resposta.

E assim foi. Planeei tudo durante algum tempo em minha mente. Alguns anos esperando ansioso pelo momento em que juntaria meu coração e alma à pálida neve daquele mundo. E ela, ela estaria ali. E quando já mais velha ela ressurge em profissionalismo puro, fortalecendo a marca que representava, eu simplesmente a rapto. E deixo que a venda que lhe coloquei fazer a magia de a trazer para minha casa. Sem pressões, violência ou castigo. Rapto limpo que serviria só para um velhote atenuar saudades de casa.

trilhos sonoros:

deolinda - um contra o outro

tiago bettencourt & mantha - só mais uma volta

domingo, 21 de novembro de 2010

parte sete

 


 Por vezes olhar para aquele sol faz-me eclodir em memórias. algumas doces, outras amargas e mesmo cinzentas. No entanto existe um denominador comum que faz todo o sentido: o sol estava lá para agraciar esse momento. Mesmo que o momento não fosse propriamente sintoma de felicidade, o calor constante da latitude bem mais baixa onde me localizava tornava tudo mais...calmo. Pelo menos era o que assim fazia parecer. Barrow tinha mais sol que lisboa. No entanto era um sol que de tão frio se tornava a contradição em plena forma natural: um sol gelado, sem mácula de irracionalidade, distante de nós.

  Acordei cedo naquele dia. Fui pescar para o lago, levei o meu carro e aquele caminho de minha casa até ao costumeiro local foi feito a ouvir temas quentes a que me habituara desde sempre. Rock mais envolvente sobretudo, peças melódicas que possam dar-nos algum tipo de consolo seja pela tristeza, conformismo, enfim solidão. Ali a solidão era plena mas consciente: e isso era o mais importante. e cada nota emanada um respirar de contentamento por ter conseguido sobreviver. Por mais que ainda pensasse em regressar, em meter-me no primeiro avião para fairbanks e a partir daí ter novamente o mundo por minha conta, sabia que fazer isso era ceder a mim mesmo. E partir para uma liberdade que não merecia. Era recluso de mim próprio ali em cima. E só eu devia carregar com esse fardo.

  Bem sei que com estes inanes relatos dou ares de que barrow é um local, para além de recôndito e inóspito também vazio. Não é. Tem gente, gente sobretudo esquimó que ali arranjou local de subistência. O frio é impedimento sim, mas não é de todo uma impossibilidade. E a comunidade vai estabilizando ali em cima, indiferente aos avanços do mundo, do universo, de nós. E ali mesmo, naquele pequeno núcleo não fechado mas consistente, eu considerava-me uma simples bolha que não queria abrir. Conhecia pessoas? Sem dúvida mas era frio o suficiente para as considerar apenas parte de uma rede de conhecimentos alargada.

  Tudo o que queria era introspecção. E sabia que ali em cima era possível. Mesmo com o calor que por vezes tanto desejava, mesmo com a atracção pela viagem e pelo rumar ao que já me era conhecido, mesmo pelo atraente medo de ver a vida nos olhos, no fundo talvez o grande motivo para ali ter ido. O mais importante era estar ali. Era conduzir neste carro ouvindo aquele tema específico, e pensar nisto tudo. E, ao mesmo tempo, saber-me a compensar tudo aquilo que de errado fiz. Senão queria morrer ao menos que me fosse embora. E num sorriso lancinante deixei a miséria que criara em meu torno e partira.

     E aquele fundo branco com um lago no meio era motivo suficiente para ter vencido. Nem que a vitória me fosse somente entregue por aquilo que não quis fazer.



Trilho sonoro: the promise ring – a picture postcard

domingo, 14 de novembro de 2010

parte seis





Depois de ter ido à pizzaria voltei para casa. O meu simples tecto, outrora ocupado por um casal itinerante que havia vazado aquele lugar dois meses depois de me ter instalado, estava mais acolhedor que nunca. Tinha deixado a lareira acesa, já para me preparar para a noite que prometia fustigar novamente cada um dos habitantes da cidade. Não é que o frio fosse propriamente um elemento de preocupação, no entanto o vento que se fazia sentir por causa de uma corrente fria vinda da Rússia era motivo suficiente para as pessoas terem tudo menos vontade de estar na rua naquela noite.

Mas eu saí para jantar. e deixei a lareira acesa. Quando cheguei a casa paraísos imensos de conforto me açambarcaram a mente como lembranças de um tempo em que sentia o sol a iluminar-me as entranhas. Parecia ter sido há tanto tempo que deixara as esperanças de felicidade em terra e embarcara para o meu território de auto-comiseração, carpindo mágoas como se elas pudessem somente esvanecer-se em nada assim que eu não estivesse presente.

Porque o lugar é fatalismo. E o sítio em que todas as noites pernoitava era demasiado frio para que lá pudesse continuar. Não tinha o conforto que a mecânica dos dias aqui possui. Não existia a racionalidade para compreender que o mais importante é a simples subsistência e que, sem dinheiro para a inflacção extrema de comuns produtos alimentícios, o ideal é tentar pescar ou conhecer alguém que o faça. em barrow não é difícil. E ao olhar para aquele sofá percebia o porquê de ter saído naquela noite. ao olhar para a lareira, para a mesa com duas revistas de surf, para a apagada televisão pronta a entreter-me em breve com mais um episódio de uma das séries que costumava acompanhar. Para o sofá com as duas almofadas, recheadas de vontade que as aconchegasse com o meu carregado corpo.


O mais importante da casa tranquila? O conforto em saber que não tinha memórias que me transpusessem para os erros passados. ali era eu novamente mas sem dor, sem sofrimento, sem mágoa. em suma, sem amor. e a felicidade que me rasgava os lábios quando pensava que somente eu é que me podia enganar. As presenças que ali podia ter jamais seriam vida com o frio, com a distância, com o mundo que ali era plenamente meu. E mesmo assim fui à pizzaria hoje jantar. Com este tempo frio era o único cliente. E a bela empregada que me atendeu, loira de olhos azuis a sorrir para mim com a proximidade que já havíamos tido, por eu morar tão perto do restaurante. Ela era provavelmente a mulher mais bela de barrow, ou pelo menos era aquela que me parecia aquecer mais o meu gelado coração. E hoje ganhei coragem, depois de tantos dias em peregrinação solitária, de lhe perguntar somente de onde era. a resposta dela foi de tal modo esclarecedora que esbocei um sorriso, despedi-me e vim ter à minha zona de conforto.


E ao perceber que uma expressão tão simples que esclarece tudo, pode ser mote suficiente para esquecer e voltar para casa, dando importância a coisas tão pequenas como minúsculas partículas de conforto. Não era preciso mais nada. Estava eu, eu mesmo, remetido a uma casa onde não posso sonhar nem com a rapariga loira da pizzaria nem com mais nenhuma outra porque finalmente era de gelo. E quebrar-me sozinho era a única concessão que podia fazer a um novo eu, feliz porque conseguia estar ausente do sentir. No cimo da terra já não fazia falta não querer a solidão.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

parte cinco





Porque alguém tem de perder. E no meio de batalhas tamanhas, ou pequenos entraves na vida alguém terá de ficar para trás. Mal ou bem, o comboio que gira em torno de nós saberá despejar passageiros a seu bel-prazer quando assim terá de ser. O pior é que tantas vezes podemos reflectir se vale a pena entrar, jogar o jogo, mantermo-nos em competição seja lá pelo que for. e aí sim temos a nossa irracionalidade equiparada a estupidez pura. De tantas tantas vezes que o melhor seria simplesmente desistir em vez de fazer figura de corpo presente. A figuração não é um posto, será necessária certo, mas não é um estado de alma que sirva para nos aquecer em dias invernais, para nos confortar quando temos medo.

E se não soubermos vestir outra coisa ficaremos almas cinzentas. Sedentários puros sem ambição, vontade ou simples argúcia para nos provarmos. Não valerá a pena? De tantas vezes que nos ouvimos e que pensamos que desta sim, esta será a vez em que vamos ganhar por variadas razões que só nós é que soubemos ouvir. e interpretámos somente aquilo que quisemos achar verdadeiro. Tantas mentiras que nos passam pela cabeça só para nos omitir de uma simples verdade: alguém tem de perder. Ninguém gosta de receber tamanha notícia pois não? Mas o melhor é acomodarmo-nos. Saír do comboio voluntariamente e simplesmente ficar na primeira estação que nos aprouver. e aí sentir a natureza, o pulsar vibrante do mundo para enterrarmos os males do coração.

Eu não via estações, não quis sair. e assim fui atirado cá para cima. A roupa só me serve porque o meu estado de alma é um coração gélido como a temperatura a que me quis sujeitar. E todo o percurso que até aqui produzi foi uma cronologia errante de falsas expectativas. Era isto que sentia ao ver-me por cima das nuvens enquanto uma melancólica música me soava aos ouvidos. e era assim que aquele anoraque que não tinha tirado quando embarquei me servia enquanto manto de auto-flagelação que, não me fazendo confortável, fazia justiça por perceber meu merecido sofrimento.

Enquanto não chegava a newark desenhava rostos das mulheres que ao longo de todo o tempo tinha perdido. e sabia que elas, todas elas, jamais poderiam ter sido alvo de meus afectos pela óbvia razão de que, enquanto me movia, mais 20 almas a querer o mesmo tentavam subir a pirâmide. Eu sem fôlego, no quarto degrau já estava demasiado ofegante para poder continuar. O problema é que quanto mais parava mais a parecia ver perto, e isso era um estímulo que tinha simplesmente para não querer continuar a subir. a ironia era que agora estava a ser empurrado para o topo do mundo, lugar inatingível para a maioria dos homens, de condições difíceis para quem lá habita, confronto de duros e ricos de espírito. eu assim não era.

Mas não encontrava melhor forma de me martirizar que enfrentar todos os perigos que podia, sem sair desiludido com o que encontrasse. Afinal queria o meu coração mais frio e seco que as polares temperaturas que encontraria em barrow. e queria-o longe de alguém que lhe fizesse calor. Para isso já chegava o anoraque que insistentemente tinha colocado para compreender a artificialidade de minhas motivações.

Alguém tem de perder. Eu decidi fugir.


trilho sonoro: tiago bettencourt e mantha - o jogo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

parte quatro



Por vezes no meio de toda a insistente confusão em que tantas saídas nocturnas se transformam, existe uma luz que nos aproxima da esperança redentora. as nossas vidas estarão num húmus a descoberto, quando podem ser fertilizadas na hora menos expectante. E é esse momento que pode redefinir toda uma perspectiva em relação ao nosso respirar: ficamos e aguentamos a pressão, saímos de cena e vamos para o frio? Naquela noite a primeira perspectiva era aquela que lhe parecia, que me parecia fazer mais sentido. Ao entrar naquele local recheado de pessoas, de demasiadas pessoas todas iguais umas às outras, com propósitos relativamente similares, ela acabou a iluminar tudo aquilo que não parecia ser lógico. Seu rosto moreno, olhos castanhos de elevada expressão, olhar acutilante e desafiador, pôs-me a sonhar em relativos minutos. E foi com tamanho aconchego de alma que me vejo a aproximar dela num instante e a conseguir desabafar-lhe todos os rebates mentais que tive em milésimos de segundo.

E a luz poisou em mim. Rapidamente só existíamos os dois no globo enquanto ficámos a dançar, compenetrados um no outro. Não era como não houvessem outros pontos de interesse no mundo, simplesmente não existiam mais pontos nenhuns. Tudo era branco, inerte e desinteressante à nossa volta, e isso foi o bastante para perceber que era ali que estava escondido o futuro que durante tanto tempo procurei. Demandas eternas em busca de um graal que reluzia ali à minha frente, a sorrir-me, a desejar ardentemente que dali saíssemos para irmos viver a nossa vida. Foi isso que acabou por acontecer em segundos: todo aquele brilhantismo foi transferido para minha casa, meu quarto, minha cama, numa noite longa de puro prazer em que lhe dei tudo e ela me deu a mim. E o momento mais bonito que me lembro em toda a minha existência foi o acordar daquela manhã com ela a servir-me de todos os propósitos possíveis para ter sonhado tão ardentemente com um dia como este.

Estava frio. Os meus pés não pareciam querer mover-se do manto branco que pisavam dia após dia. Ao longe via as luzes a começarem a surgir, a cidade a acordar novamente de mais uma pequena noite providenciada pelo clima polar que era habitual companheiro de lides. Consegui ainda andar o suficiente naquela matutina madrugada para chegar com sucesso junto do oceano. e pensar novamente nas razões para ter terminado com tudo aquilo que me prendia a outra terra que não aquela. e a luz voltou a criar impacto quando me apercebi que aquela mulher novamente reflectida no oceano podia ter sido minha companheira,mulher, doce esposa, eterna comigo. Porque juntos, mesmo quando deixássmos de respirar, seríamos sempre um só. Se eu não tivesse somente sonhado talvez o branco não fosse a cor predominante. Talvez fossem todas. E, apesar de não existir um desinteresse assim tão acentuado em relação à cor branca, ela não se apresentava tão atractiva como o mundo de todas as cores que vi naquela noite.

Ali estava finalmente só. Tanto tempo depois da viagem, tanto tempo depois de ter criado mundos e fundos para conseguir chegar ao topo do mundo. e tantas longas vidas que pereceram entretanto, sem eu saber. Tantas inovações tecnológicas, placas que gitram o mundo, novos caminhos para a nossa sobrevivência que possam ter sido criados sem eu sequer saber.Talvez ela tenha terminado mais cedo que julgara. Talvez ela esteja algures a ver-me sonhar com aquela noite que talvez nunca tenha acontecido. Talvez ela esteja aqui comigo sentada a ver o oceano reflectir a face mais esplendorosa que já havia visto . E assim o meu sonho tinha ganho contornos reais. Mesmo a milhares quilómetros de distância, os momentos daquela noite continuavam erigidos na branca e desinteressante neve que se tornou a minha vida.


trilhos sonoros:

the cure - just like heaven

aereogramme - i don't need your love

sábado, 30 de outubro de 2010

parte três



Com um frio demolidor sai de casa recheado de adereços de inverno. Kispo dos grandes, luvas, gorro, cachecol, e umas duas camisolas vestidas. Aquele Janeiro de facto estava a ser dos mais gelados dos últimos anos, e não existiam por enquanto grandes sinais de esperança numa retoma da normal temperatura naquele seu sítio. A cidade devagar acordava, com os candeeiros a começarem a ficarem somente a meia-luz, o padeiro ao pé de casa a abrir a porta de vidro, o quiosque de jornais a receber os periódicos do costume.

No entanto aquilo para ele pouco importava. Naquele dia ele não se levantou para apanhar o autocarro que o conduziria ao malfadado call-center dos últimos meses. Não se levantou para ver o costume, viver o costume, respirar o ar de sempre. Afinal a mala que trazia a rastejar pelo chão era precisamente indiciador do contrário: aquele seria um dia diferente dos demais. E daí que em pleno Agosto tanto adereço invernal fosse utilizado, digno de uma nota específica para qualquer transeunte. Ao dizer bom dia ao senhor Marques da padaria à senhora Andozinda do quiosque, eles ficavam a olhar para ele sem sequer granjear um qualquer som. Estava demasiado calor para isso. Mas para ele não: o frio gelado de Janeiro era tudo o que lhe apetecia sentir naquele momento. Porque o futuro hábito era mais importante que o do passado, era a sua teia de esquecimento de tudo, de libertação, de felicidade, de vida.

E foi com esses pensamentos na cabeça que se digna a apanhar um táxi, sob o olhar atónito do taxista, que nunca devia ter visto ninguém tão preocupado com o frio numa tarde como aquela. Colocou a bagagem na mala do carro, sentou-se e perguntou-lhe o destino. Ele sorridente somente respondeu:

- Barrow.
- Desculpe? Não ouvi.
- Barrow.
- Sim mas…isso fica onde?
- No norte. Mas se me deixar no aeroporto eu ponho-me lá.
- Aeroporto?
- Enfim, pode ser sim.

O taxista nem lhe perguntou mais nada, já satisfeito com a sua ilacção de que o passageiro era um qualquer louco. Deixou-o no local, recebeu o dinheiro, e disse-lhe boa tarde. A partir dali foi à vida dele tentando decerto esquecer o maluco dos casacos com os 30 graus que se faziam sentir. Já o rapaz entrou no aeroporto com o bilhete na mão para o outro continente. A América esperava claramente por ele, não havia nada a fazer. Tinha de partir, sair arejar, ser outro. E esse conjunto de personalidades conseguiu-o quando percebeu que todo o manto branco envolvente era conjugação mais que suficiente para se ir embora. Ali. No topo do mundo.

Fica expectante. Lá dentro meio mundo continuava a fitá-lo por causa da sua estranha indumentária. E ele por dentro sentia frio, embora gotas e gotas de suor lhe fossem caindo do rosto. Mas pouco lhe interessava que questionassem a sua abordagem à temperatura que se fazia sentir. Para ele estavam 20 graus abaixo de zero e a neve era intensa. Longas planícies de gelo se abeiravam dele e faziam-no uma espécie de rei dos céus. E tão bonito que seria sentir-se livre com todas as preocupações do outro lado do mundo, com toda a gente que conhecia ausente, com o mundo inteiro a virar-lhe definitivamente costas. Para ele era paraíso – e pensava só o conseguir num local inóspito, longínquo, inatingível. Tudo o resto seriam meros refúgios e refugos inconsequentes e que não o levariam de todo à máxima redenção, meditação e vida. E sair dali como que purificado, ou não sair, morrer ali com os topos brancos a enregelarem-lhe o cadáver a decompor-se.

Olha para o bilhete rumo a Newark e percebe que está na altura de finalmente embarcar. Há muito que tinha feito o check-in, ali no cais só esperava por um chamamento humano, quente que lhe indicasse interacção, que lhe desse realmente importância. E quando a voz do megafone soou em todo o aeroporto é que ele finalmente sorriu, clamou por liberdade e avançou. Estava na altura de acabar com o cordão umbilical e finalmente partir, rumo a um prometido, doce e gelado desconhecido.


trilho sonoro: porcupine tree - in absentia

parte dois



Abro os olhos. O sol cobria-me totalmente a visão e pouco deixava antever o dia que tinha à minha frente. Senti um mal estar numa das pernas que tinha ficado meio colada ao volante. A cabeça dóia-me de um modo não fulminante mas constante, demasiado constante. Nem me sentia ali. Nem sabia onde estava. Provavelmente perdido numa das entranhas do mundo que por vezes tanto gosta de me acolher, qual viajante desbragado em busca de paz interior.

E ao olhar para o banco de trás e ver as garrafas de alto teor alcóolico, bebidas brancas...pretas, castanhas, amarelas, de todas as cores. e meia dúzia de comprimidos que provavelmente me haviam deixado em êxtase, mas já meio esmaecidos com o embater do sol directamente naquelas cápsulas ali soltas ao desbarato.

Só tinha uma certeza: aquele carro era o meu. Mas não me conseguia consciencializar de como ali tinha chegado. Decido-me por retirar a perna da posição desconfortável, algo conseguido muito a custo, convivendo inclusivamente com a dormência daquela parte de meu corpo. Sento-me no lugar do condutor e é aí que sinto um arrepiar de espinha. Não daqueles que surgem em filmes de terror clichés, onde um arrepiar é o momento que desencadeia uma torrente de desgraças e mortes para seus protagonistas. Mas frio mesmo. Um tremer gélido de frio, pouco condizente com o sol que sabia existir. Estranha dicotomia de sentimentos meteorológicos divergentes. A menos que...

Que estivesse a olhar para longos mantos de neve. E que mal conseguisse abrir a porta do carro, condicionada por uma massa branca que começava a ficar demasiado espessa. e claro, tinha vestido um anoraque, umas botas, umas calças de bombazine que deviam ser quentes. E ao sair do carro vejo branco, vejo amarelo, vejo azul...mas mais nada. Três cores compunham o ambiente daquela paisagem bela e inerte. No entanto algumas cores pareciam também ali estar ao longe. Uns blocos verdes. Uns blocos amarelos. Vermelhos. Um bloco maior que parecia ser castanho. Uma cidade ali no meio do branco, pronta a salvar minha condição humana. ali sentia-me perdido ao ter acordado no meu carro. Mas uns metros à frente a salvação parecia surgir com meia dúzia de construções de betão a acalorar o meu caminho.

Olhei para o relógio. seis da manhã. Afinal a ressaca tinha chegado demasiado depressa. e a dor de esquecer começava a ser maior que a dor de cabeça do simples acordar naquele carro. Da perna. Dos olhos ao vislumbrarem o doirado do sol. E entre saberes, ao caminhar para perto da alma soube onde estava. Longe. Ali em cima estávamos demasiado longe para olhar para baixo. e eu para olhar para casa.


trilho sonoro: something corporate - i woke up in a ca

segunda-feira, 15 de março de 2010

parte um




Está frio. Cada vez mais sinto o gelo nas minhas entranhas, a funcionar como catalisador de passividade. E mal me consigo mover em temanho ror de esforço. Decidi orientar-me no topo do mundo: pirâmide eterna de constante escape. E agora aqui, movido a energia corporal, aqueço-me com gigante cobertor de penas e aquecedor ligado.


Lá fora é de dia. São quatro da manhã e o sol brilha ofuscante, como se pensasse que todos nós deveríamos estar lá fora a usufruir de seus prazeres. Enganava-se porém: a luz era bela e esplendorosa mas pouco motivante. Talvez por causa dos vinte e um graus negativos que aquela noite solarenga proporcionava. Talvez porque naquele topo do mundo, o mais indicado não seria olhar para cima, mas sim para baixo: a ver o resto do mundo sob os nossos pés, qual miradouro imaginário de onerosos fins.
E é aqui que me decidi a vir depois de vida extenuante nos trópicos do movimento constante. O âmago da sociedade dizem. A força que emerge das grandes metrópoles, das suas acções congénitas, da sua expressividade cultural. Aquele amor profundo por uma progressão social pouco condizente com a desonestidade que grassa naquelas terras.


Estarei longe? Ao menos vivo por cima de todos vocês. Bem cá em cima onde calor humano sobrevive nas estepes geladas em nossa volta. E sorrio ao ver a luz das quatro da manhã.