terça-feira, 30 de novembro de 2010

parte oito.




Não sei de onde era. Neste momento olho para o habitual rebuliço na cidade, naqueles dias mais quentes onde a temperatura consegue estar positiva. pessoas sem quispos a andar por barrow, com carrinhos de compras atrás sem botas de nave, com caras totalmente destapadas e alguns a ousar utilizar t-shirts de simples algodão. estava eu ali ainda de camisola pronto para afirmar sofrimento face àquilo que julgava ser totalmente hostil, enquanto os nativos vagueavam alegremente, indo de loja em loja, de restaurante em restaurante, ao aeroporto, ao pequeno centro comercial que barrow possui.

E pensava que surgiriam também turistas. Era altura de começarem a existir pessoas de fora, afoitas pos descobrir o topo do mundo onde vivem. muitos americanos, alguns hispânicos e japoneses, mas sobretudo familiares daqueles que foram ficando na cidade. Era uma roda viva em torno de quem regressava, partido há muitos ou poucos anos para latitudes mais baixas. Convenhamos que para muitas destas pessoas estar longe de possível civilização, e não ter meios terrestres para além de meia dúzia de quilómetros para diante, era fenómeno de grande consternamento. Por mais amor que tivessem a barrow, a falta de relacionamento com povoações próximas era obviamente inexistente.

Eu já parecia ser da casa. Não sei de facto de onde era. passado aquele tempo, as minhas memórias geográficas eternizavam-se neste manto de neve e brancura. pouco mais existiria de mim para além dos dias em que passeava vagarosa e pacientemente pelas ruas geladas e enlameadas da cidade mais acima. As casas de tectos cheios de gelo, as portadas brancas, os restaurantes com o branco a sorrir à porta. os supermercados de preços exorbitantes, os calorosos centros recreativos com caldeiras que nos temperavam, os lagos onde as baleias eram caçadas, e mesmo o aeroporto que só me lembro de ter utilizado quando chegara ali. E era naquele mesmo local que a vi finalmente surgir.

Não sei quantos anos tinham passado. mas ela era a mesma. o mesmo sorriso de afecto e comoção, a mesma expressão de felicidade eternizada nos seus olhos, o mesmo cabelo longamente loiro a querer a minha clara afeição. Não era pouco eu ver tudo aquilo em minha recôndita alma. Nunca pensei reconhecê-la depois de tanto tempo a negar-me a verdade. A Joana restava ali imaculada, pura e simples como se impossível fosse envelhecimento em tal face. E meu rugado rosto sorriu perante memória eternizada em ares de distanciamento entre os nossos tectos.

Sim fui ter com ela. Hospedeira? Assim parecia. Ela sorriu-me, chamou-me velhote simpático e indicou que se chamava Charlotte. Vinha de fairbanks, tinha os seus 30 anos e nunca tinha estado em portugal. não sabia palavra do nosso idioma. e sobretudo não era a Joana, mesmo depois de eu ter insistido que a mentira mais que um pecado, era um dilema. Volta-me a sorrir, diz que tem de ir trabalhar, mesmo observando a minha manifesta insatisfação por tão pouco esclarecedora resposta.

E assim foi. Planeei tudo durante algum tempo em minha mente. Alguns anos esperando ansioso pelo momento em que juntaria meu coração e alma à pálida neve daquele mundo. E ela, ela estaria ali. E quando já mais velha ela ressurge em profissionalismo puro, fortalecendo a marca que representava, eu simplesmente a rapto. E deixo que a venda que lhe coloquei fazer a magia de a trazer para minha casa. Sem pressões, violência ou castigo. Rapto limpo que serviria só para um velhote atenuar saudades de casa.

trilhos sonoros:

deolinda - um contra o outro

tiago bettencourt & mantha - só mais uma volta

domingo, 21 de novembro de 2010

parte sete

 


 Por vezes olhar para aquele sol faz-me eclodir em memórias. algumas doces, outras amargas e mesmo cinzentas. No entanto existe um denominador comum que faz todo o sentido: o sol estava lá para agraciar esse momento. Mesmo que o momento não fosse propriamente sintoma de felicidade, o calor constante da latitude bem mais baixa onde me localizava tornava tudo mais...calmo. Pelo menos era o que assim fazia parecer. Barrow tinha mais sol que lisboa. No entanto era um sol que de tão frio se tornava a contradição em plena forma natural: um sol gelado, sem mácula de irracionalidade, distante de nós.

  Acordei cedo naquele dia. Fui pescar para o lago, levei o meu carro e aquele caminho de minha casa até ao costumeiro local foi feito a ouvir temas quentes a que me habituara desde sempre. Rock mais envolvente sobretudo, peças melódicas que possam dar-nos algum tipo de consolo seja pela tristeza, conformismo, enfim solidão. Ali a solidão era plena mas consciente: e isso era o mais importante. e cada nota emanada um respirar de contentamento por ter conseguido sobreviver. Por mais que ainda pensasse em regressar, em meter-me no primeiro avião para fairbanks e a partir daí ter novamente o mundo por minha conta, sabia que fazer isso era ceder a mim mesmo. E partir para uma liberdade que não merecia. Era recluso de mim próprio ali em cima. E só eu devia carregar com esse fardo.

  Bem sei que com estes inanes relatos dou ares de que barrow é um local, para além de recôndito e inóspito também vazio. Não é. Tem gente, gente sobretudo esquimó que ali arranjou local de subistência. O frio é impedimento sim, mas não é de todo uma impossibilidade. E a comunidade vai estabilizando ali em cima, indiferente aos avanços do mundo, do universo, de nós. E ali mesmo, naquele pequeno núcleo não fechado mas consistente, eu considerava-me uma simples bolha que não queria abrir. Conhecia pessoas? Sem dúvida mas era frio o suficiente para as considerar apenas parte de uma rede de conhecimentos alargada.

  Tudo o que queria era introspecção. E sabia que ali em cima era possível. Mesmo com o calor que por vezes tanto desejava, mesmo com a atracção pela viagem e pelo rumar ao que já me era conhecido, mesmo pelo atraente medo de ver a vida nos olhos, no fundo talvez o grande motivo para ali ter ido. O mais importante era estar ali. Era conduzir neste carro ouvindo aquele tema específico, e pensar nisto tudo. E, ao mesmo tempo, saber-me a compensar tudo aquilo que de errado fiz. Senão queria morrer ao menos que me fosse embora. E num sorriso lancinante deixei a miséria que criara em meu torno e partira.

     E aquele fundo branco com um lago no meio era motivo suficiente para ter vencido. Nem que a vitória me fosse somente entregue por aquilo que não quis fazer.



Trilho sonoro: the promise ring – a picture postcard

domingo, 14 de novembro de 2010

parte seis





Depois de ter ido à pizzaria voltei para casa. O meu simples tecto, outrora ocupado por um casal itinerante que havia vazado aquele lugar dois meses depois de me ter instalado, estava mais acolhedor que nunca. Tinha deixado a lareira acesa, já para me preparar para a noite que prometia fustigar novamente cada um dos habitantes da cidade. Não é que o frio fosse propriamente um elemento de preocupação, no entanto o vento que se fazia sentir por causa de uma corrente fria vinda da Rússia era motivo suficiente para as pessoas terem tudo menos vontade de estar na rua naquela noite.

Mas eu saí para jantar. e deixei a lareira acesa. Quando cheguei a casa paraísos imensos de conforto me açambarcaram a mente como lembranças de um tempo em que sentia o sol a iluminar-me as entranhas. Parecia ter sido há tanto tempo que deixara as esperanças de felicidade em terra e embarcara para o meu território de auto-comiseração, carpindo mágoas como se elas pudessem somente esvanecer-se em nada assim que eu não estivesse presente.

Porque o lugar é fatalismo. E o sítio em que todas as noites pernoitava era demasiado frio para que lá pudesse continuar. Não tinha o conforto que a mecânica dos dias aqui possui. Não existia a racionalidade para compreender que o mais importante é a simples subsistência e que, sem dinheiro para a inflacção extrema de comuns produtos alimentícios, o ideal é tentar pescar ou conhecer alguém que o faça. em barrow não é difícil. E ao olhar para aquele sofá percebia o porquê de ter saído naquela noite. ao olhar para a lareira, para a mesa com duas revistas de surf, para a apagada televisão pronta a entreter-me em breve com mais um episódio de uma das séries que costumava acompanhar. Para o sofá com as duas almofadas, recheadas de vontade que as aconchegasse com o meu carregado corpo.


O mais importante da casa tranquila? O conforto em saber que não tinha memórias que me transpusessem para os erros passados. ali era eu novamente mas sem dor, sem sofrimento, sem mágoa. em suma, sem amor. e a felicidade que me rasgava os lábios quando pensava que somente eu é que me podia enganar. As presenças que ali podia ter jamais seriam vida com o frio, com a distância, com o mundo que ali era plenamente meu. E mesmo assim fui à pizzaria hoje jantar. Com este tempo frio era o único cliente. E a bela empregada que me atendeu, loira de olhos azuis a sorrir para mim com a proximidade que já havíamos tido, por eu morar tão perto do restaurante. Ela era provavelmente a mulher mais bela de barrow, ou pelo menos era aquela que me parecia aquecer mais o meu gelado coração. E hoje ganhei coragem, depois de tantos dias em peregrinação solitária, de lhe perguntar somente de onde era. a resposta dela foi de tal modo esclarecedora que esbocei um sorriso, despedi-me e vim ter à minha zona de conforto.


E ao perceber que uma expressão tão simples que esclarece tudo, pode ser mote suficiente para esquecer e voltar para casa, dando importância a coisas tão pequenas como minúsculas partículas de conforto. Não era preciso mais nada. Estava eu, eu mesmo, remetido a uma casa onde não posso sonhar nem com a rapariga loira da pizzaria nem com mais nenhuma outra porque finalmente era de gelo. E quebrar-me sozinho era a única concessão que podia fazer a um novo eu, feliz porque conseguia estar ausente do sentir. No cimo da terra já não fazia falta não querer a solidão.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

parte cinco





Porque alguém tem de perder. E no meio de batalhas tamanhas, ou pequenos entraves na vida alguém terá de ficar para trás. Mal ou bem, o comboio que gira em torno de nós saberá despejar passageiros a seu bel-prazer quando assim terá de ser. O pior é que tantas vezes podemos reflectir se vale a pena entrar, jogar o jogo, mantermo-nos em competição seja lá pelo que for. e aí sim temos a nossa irracionalidade equiparada a estupidez pura. De tantas tantas vezes que o melhor seria simplesmente desistir em vez de fazer figura de corpo presente. A figuração não é um posto, será necessária certo, mas não é um estado de alma que sirva para nos aquecer em dias invernais, para nos confortar quando temos medo.

E se não soubermos vestir outra coisa ficaremos almas cinzentas. Sedentários puros sem ambição, vontade ou simples argúcia para nos provarmos. Não valerá a pena? De tantas vezes que nos ouvimos e que pensamos que desta sim, esta será a vez em que vamos ganhar por variadas razões que só nós é que soubemos ouvir. e interpretámos somente aquilo que quisemos achar verdadeiro. Tantas mentiras que nos passam pela cabeça só para nos omitir de uma simples verdade: alguém tem de perder. Ninguém gosta de receber tamanha notícia pois não? Mas o melhor é acomodarmo-nos. Saír do comboio voluntariamente e simplesmente ficar na primeira estação que nos aprouver. e aí sentir a natureza, o pulsar vibrante do mundo para enterrarmos os males do coração.

Eu não via estações, não quis sair. e assim fui atirado cá para cima. A roupa só me serve porque o meu estado de alma é um coração gélido como a temperatura a que me quis sujeitar. E todo o percurso que até aqui produzi foi uma cronologia errante de falsas expectativas. Era isto que sentia ao ver-me por cima das nuvens enquanto uma melancólica música me soava aos ouvidos. e era assim que aquele anoraque que não tinha tirado quando embarquei me servia enquanto manto de auto-flagelação que, não me fazendo confortável, fazia justiça por perceber meu merecido sofrimento.

Enquanto não chegava a newark desenhava rostos das mulheres que ao longo de todo o tempo tinha perdido. e sabia que elas, todas elas, jamais poderiam ter sido alvo de meus afectos pela óbvia razão de que, enquanto me movia, mais 20 almas a querer o mesmo tentavam subir a pirâmide. Eu sem fôlego, no quarto degrau já estava demasiado ofegante para poder continuar. O problema é que quanto mais parava mais a parecia ver perto, e isso era um estímulo que tinha simplesmente para não querer continuar a subir. a ironia era que agora estava a ser empurrado para o topo do mundo, lugar inatingível para a maioria dos homens, de condições difíceis para quem lá habita, confronto de duros e ricos de espírito. eu assim não era.

Mas não encontrava melhor forma de me martirizar que enfrentar todos os perigos que podia, sem sair desiludido com o que encontrasse. Afinal queria o meu coração mais frio e seco que as polares temperaturas que encontraria em barrow. e queria-o longe de alguém que lhe fizesse calor. Para isso já chegava o anoraque que insistentemente tinha colocado para compreender a artificialidade de minhas motivações.

Alguém tem de perder. Eu decidi fugir.


trilho sonoro: tiago bettencourt e mantha - o jogo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

parte quatro



Por vezes no meio de toda a insistente confusão em que tantas saídas nocturnas se transformam, existe uma luz que nos aproxima da esperança redentora. as nossas vidas estarão num húmus a descoberto, quando podem ser fertilizadas na hora menos expectante. E é esse momento que pode redefinir toda uma perspectiva em relação ao nosso respirar: ficamos e aguentamos a pressão, saímos de cena e vamos para o frio? Naquela noite a primeira perspectiva era aquela que lhe parecia, que me parecia fazer mais sentido. Ao entrar naquele local recheado de pessoas, de demasiadas pessoas todas iguais umas às outras, com propósitos relativamente similares, ela acabou a iluminar tudo aquilo que não parecia ser lógico. Seu rosto moreno, olhos castanhos de elevada expressão, olhar acutilante e desafiador, pôs-me a sonhar em relativos minutos. E foi com tamanho aconchego de alma que me vejo a aproximar dela num instante e a conseguir desabafar-lhe todos os rebates mentais que tive em milésimos de segundo.

E a luz poisou em mim. Rapidamente só existíamos os dois no globo enquanto ficámos a dançar, compenetrados um no outro. Não era como não houvessem outros pontos de interesse no mundo, simplesmente não existiam mais pontos nenhuns. Tudo era branco, inerte e desinteressante à nossa volta, e isso foi o bastante para perceber que era ali que estava escondido o futuro que durante tanto tempo procurei. Demandas eternas em busca de um graal que reluzia ali à minha frente, a sorrir-me, a desejar ardentemente que dali saíssemos para irmos viver a nossa vida. Foi isso que acabou por acontecer em segundos: todo aquele brilhantismo foi transferido para minha casa, meu quarto, minha cama, numa noite longa de puro prazer em que lhe dei tudo e ela me deu a mim. E o momento mais bonito que me lembro em toda a minha existência foi o acordar daquela manhã com ela a servir-me de todos os propósitos possíveis para ter sonhado tão ardentemente com um dia como este.

Estava frio. Os meus pés não pareciam querer mover-se do manto branco que pisavam dia após dia. Ao longe via as luzes a começarem a surgir, a cidade a acordar novamente de mais uma pequena noite providenciada pelo clima polar que era habitual companheiro de lides. Consegui ainda andar o suficiente naquela matutina madrugada para chegar com sucesso junto do oceano. e pensar novamente nas razões para ter terminado com tudo aquilo que me prendia a outra terra que não aquela. e a luz voltou a criar impacto quando me apercebi que aquela mulher novamente reflectida no oceano podia ter sido minha companheira,mulher, doce esposa, eterna comigo. Porque juntos, mesmo quando deixássmos de respirar, seríamos sempre um só. Se eu não tivesse somente sonhado talvez o branco não fosse a cor predominante. Talvez fossem todas. E, apesar de não existir um desinteresse assim tão acentuado em relação à cor branca, ela não se apresentava tão atractiva como o mundo de todas as cores que vi naquela noite.

Ali estava finalmente só. Tanto tempo depois da viagem, tanto tempo depois de ter criado mundos e fundos para conseguir chegar ao topo do mundo. e tantas longas vidas que pereceram entretanto, sem eu saber. Tantas inovações tecnológicas, placas que gitram o mundo, novos caminhos para a nossa sobrevivência que possam ter sido criados sem eu sequer saber.Talvez ela tenha terminado mais cedo que julgara. Talvez ela esteja algures a ver-me sonhar com aquela noite que talvez nunca tenha acontecido. Talvez ela esteja aqui comigo sentada a ver o oceano reflectir a face mais esplendorosa que já havia visto . E assim o meu sonho tinha ganho contornos reais. Mesmo a milhares quilómetros de distância, os momentos daquela noite continuavam erigidos na branca e desinteressante neve que se tornou a minha vida.


trilhos sonoros:

the cure - just like heaven

aereogramme - i don't need your love